Trilha Invisível

Restará ainda uma palavra no céu de minha boca que nunca foi trilhada?
Como floresta não mapeada, fora dos satélites?
Haverá lugar deserto que jamais conheceu traços humanos?
Rio, corredeira, águas que nunca banharam o corpo nu de um outro como eu?
Haverá algum idioma desconhecido, estrangeiro a toda a espécie,
como serpente desprovida de nome em latim?
Um pôr-de-sol de altura, pico ou monte jamais visto pelos olhos de um outro como eu?

E ainda o 'vazio' escondido em qualquer parte que justifique a existência do vocábulo?

Devo lançar novas cordas ao abismo. Porém, convém não descê-lo.
Devo lançar pedras óbvias no infinito, para que ninguém mais as possa ver.

Desenhei a custo, pena e paciência
A cratera imaginada dos meus espaços internos
Feita do avesso dos meus dias
Pela inédita alegria de poder anunciar, só para mim
Um amanhecer desnudado de raios.

(Fenômeno desconhecido das ciências, da ufologia, da psquiatria)

Deito-me em areias virgens, de coloratura indefinível
onde palavras estranhas me acolhem
na vasta e escura ausência de sentido ou significado.

Penso então que 'isto sim é silêncio', embora tampouco exista ali este título.
E repouso absoluto sob céus primordiais.
Às minhas costas, vejo apagarem-se as últimas pegadas que deixei momentos atrás,
quando eu ainda era um outro, como eu.

Por fim, perco-me também do tempo, completamente só
atento ao desabrochar de uma flor rara
no topo da pele que separa meu corpo
do resto do universo.

Vaso


Vaso Vazio
A cheia
de um rio meu

EU
rio de mim
Rio demasiado de mim

Riso de até
esvaziar-me toda
derramada fora

Ventilada
por dentro

Vaso sem flor,
sem terra, sem rios
Enche em correnteza
Esgota-se de ar

Vaso 
Infinito

Vazio, vazio
Vazio



Oroboro

Subitamente vi. Vi meu rabo, de rabo de olho. Inalcançável. Estendendo-se pelo infinito animal do meu profundo ser primitivo. Vi minha longa calda deitada na escada evolutiva, sua ponta ultrapassando meus ancestrais primatas. Vi a mim mesmo como um prisma multicolorido. Atado ao passado pelas nádegas, num rudimentar rabo de pavão. E sobre o rabo sentei-me, constrangido. Espírito encarnado em quatro patas, é o que sou. De imensas asas contraídas. Vôo pequeno, baixo e tímido na enormidade áerea. Esculpi uma vida de cheia de sentidos com apenas cinco sentidos...E um rabo, que entrevejo pelo canto da retina. Outro dia, vi meu antepassado: um nabo, caído na calçada da feira. Estava exatamente na rabeira da metamorfose vegetal que culminou anos depois em cérebro, identidade e coluna vertebral. Culminou em mim: bípede, sublime e paradoxal. Fingi não ver que entre o nabo e o ar do espaço que havia entre mim e o nabo, havia meu rabo. Minha metade sapo, a se esgueirar na estrada. Incômodo e indiscreto rabo, sob o pino sol do Ser que ainda hei de conhecer. Ser que um dia hei de me tornar. Bem ao fim da calda larga, ali está a pairar por sobre os ventos que hão de me passar. Deixarei tudo para trás, pelo rabo e, por fim, nada mais de mim levarei. Verei então o rabo despregar-se de vez e quedar-se também pelo caminho. Serei nada menos que um grão de areia. Nada mesmo, nada. Nado de um peixe, em seu regresso ao mar abissal. À fonte primeva. Uma outra Eva inicial. Serei nada, nado, peixe, areia. Verei, então, de rabo de olho o meu grande rabo de sereia. Sentado na vasta calda de um cometa como um girino cósmico, a flutuar fulminante pelo espaço sideral. E serei absoluto, uterino. O grilo angelical.

O cisco

Fui no médico de olho
E descobriu-se que há
Um cisco no meu olho esquerdo

Entendi que por conta disso
Aprendi a enxergar
Só pelas tangentes de mim
E fui tropeçando a vista nos outros

Comecei vendo toda a vida embaçada
E a mim mesma em tudo, misturada
Até alcançar uma visão embargada
De diferente compreensão

O cisco causou cisão no meu andar
Síncopa no meu coração
Delírio de palavra
Coceira de ver o mundo na totalidade.

'Deve arrancá-lo do olho', receitou o médico
Mas fiquei a me perguntar:
Como fazer isso sem levar
com o cisco o meu olhar?

Esse Sr. Nascimento


Certas canções que ouço

Cabem tão dentro de mim

Que perguntar carece:

Quem foi que contou para o Milton?!